Desde a célebre frase de Antônio Conselheiro, ainda na Guerra de Canudos (1896-97), passando pela canção Sobradinho, de Sá & Guarabira, de 1977, até os nossos dias, mais de um século ecoa a dicotomia entre mar e sertão. Claro, do ponto de vista ambiental, refere-se ao semiárido nordestino – atrelado à ideia dos “sertões” desde Euclides da Cunha (1903) – em oposição à Zona da Mata, e aos processos de mudança brusca, de um extremo a outro, resultantes da ação humana.
Mas também elucida um ponto que cá no Arado nos inquieta: que processos houve para que, conceitualmente, o “sertão” e o “rural” fossem postos tão longe do mar? Movimento marcado, por exemplo, pela desconexão dessas ideias em relação à cultura caiçara.
Não existe rural à beira-mar? Não há “sertão” no litoral?
Um caminho investigativo interessante consiste na etimologia e no histórico lexicográfico desses termos em documentos de séculos passados. “Sertão”, acreditava-se, era uma corruptela de “desertão”, alcunha dada pelos portugueses a regiões despovoadas da África Equatorial.
Contudo, um estudo encomendado pela Academia Brasileira de Letras na década de 1940 produziu uma comunicação, redigida e apresentada por Gustavo Barroso, que ofereceu uma outra hipótese: “sertão” é a evolução aportuguesada de “muceltão”, uma corruptela do “puro angolano” quimbundo, que significa literalmente “mato” e era empregado por pessoas do interior do país, designando “mato longe da costa”. “Muceltão”, “celtão”, “certão” e, por fim, “sertão”, do interior de Angola, passou a designar também, com a apropriação portuguesa, o que culturas europeias já se referiam em terminologia latina como locus mediterraneus, uma “região no interior”. E, mais importante, um espaço que “opõe-se ao marítimo e costa”, segundo dicionário do século XVIII, um dos primeiros organizados em língua portuguesa.
Já “rural” vem do latim ruralis, adjetivo derivado do radical rus, relativo ao campo – que também deu origem a termos como “rústico”, originalmente “referente ao campo”, cuja semântica foi embebida de sentido depreciativo, como oposto de “elaborado”, “sofisticado”, “lapidado”.
Assim, detectamos duas oposições: o sertão enquanto interior, distante da costa; e o rural enquanto campesino, inverso do citadino.
É compreensível a primazia do mar como marcador espacial dada a formação histórica do Brasil e a atuação portuguesa na Época Moderna. Mas os vários modos de vida desenvolvidos na grande e diversa extensão territorial do país ao longo do tempo colocam em xeque a rigidez conceitual dessas dicotomias.
O sociólogo Antônio Carlos Diegues, por exemplo, descreve relações variadas entre diferentes profissionais da pesca costeira com o espaço urbano.
“Os pescadores-lavradores continuam a viver nas comunidades, nas praias distantes dos centros urbanos, onde com dificuldade alguns guardam a posse da terra onde fazem suas pequenas roças. [...] Os pescadores artesanais, pela vinculação maior com o mercado, moram na própria cidade ou em suas proximidades. A cidade, no entanto, espaço físico e social para onde se encaminha o excedente da produção de ambos, passa a ter um sentido diferente para uns e para outros”.
Seria possível caracterizar esses pescadores-lavradores como rurais? Cremos que sim. Do mesmo modo, há gente vivendo na roça ao longo da costa, criando gado, tirando leite, cultivando o solo, portanto, também camponesa, também rural. Além de que não faltam “sertões” do litoral, como do Sertão do Ubatumirim, da Quina, do Taquari, do Prumirim...
Apesar dos estereótipos associados a esses conceitos, uns relacionados ao seu desenvolvimento semântico, outros a reducionismos limitantes, como uma certa ideia fixa de “sertanejo”, de “caipira”, ou de “camponês”, entendemos que há espaço para mais diversidade no que se concebe dentro do escopo do “rural”, abarcando experiências que vão dos rincões mais interioranos à costa. E se muitos sertões se avizinham do mar, que “a profecia do beato” não se concretize nesse antropoceno, fazendo tudo isso se alagar.
Sobradinho, por Sá e Guarabyra
Referências
ANTONIO FILHO, F. D. Sobre a palavra “Sertão”: origens, significados e usos no Brasil (do ponto de vista da Ciência Geográfica), 2011.
BARROSO, Gustavo. A origem da palavra “sertão”, 1947.
BLUTEAU, D. Raphael. Vocabulario Portuguez & Latino, 1712-21.
DIEGUES, A. C. Pescadores, camponeses e trabalhadores do mar, 1983.
SILVA, A. de M. Diccionario da lingua portugueza composto pelo padre D. Rafael Bluteau, reformado, e accrescentado por Antonio de Moraes Silva natural do Rio de Janeiro, 1789.